sábado, 10 de novembro de 2012

VALE A PENA LER DE NOVO


A MANIFESTAÇÃO DA GRAÇA DE DEUS

 

Yvson Paulo Nascimento Ferreira*[1]

 

Resumo

 

A doutrina da graça está amplamente revelada na Bíblia, e esta demonstra o incomensurável amor de Deus pelos seres humanos. A graça divina foi manifestada desde o princípio, de forma mais contundente, através da maneira como Deus tratou o homem antes e depois da queda. Em sua perspectiva veterotestamentária, a graça é revelada a partir dos conceitos de eleição e de aliança. Esta perspectiva é ampliada no Novo Testamento, sobretudo pela contribuição do apóstolo Paulo, o qual conseguiu captar na vida de Jesus a autodoação de Deus.  A primeira parte deste artigo traz informações referentes as primeiras revelações desta dádiva divina. Tais informações são complementadas e ampliadas na segunda parte com a descrição da renovação que recebeu esta doutrina nos escritos neotestamentários. A terceira parte procura mostrar como a graça se manifestou de forma plena em, e por Jesus.

 

Abstract

 

 

A GRAÇA VETEROTESTAMENTÁRIA

 

Não consta nos escritos veterotestamentários um termo próprio para assinalar a palavra graça como atualmente entendida pelos cristãos,[2] entretanto, esta doutrina “figura [por todo o] Antigo Testamento [AT]”,[3] em forma de uma “promessa e como uma esperança”.[4] A Graça divina é manifestada desde o princípio, sobretudo, pela maneira como Deus tratou o homem antes e depois da queda[5] (Gn 2:8-22; 3:8-15).[6] Deus não se deixou abater pela situação pecaminosa do homem, antes, por Sua iniciativa gratuita suscitou “no homem um movimento de conversão... [que] exercesse-a do nada, como se havia exercido [em] Sua iniciativa criadora”.[7] A graça divina é ainda igualmente revelada “ao longo da experiência religiosa do povo [de Israel], a partir dos conceitos de eleição e de aliança”.[8] “A eleição do povo de Israel se baseou exclusivamente sobre a vontade de Deus”,[9] sendo assim “um gesto absolutamente gracioso”.[10] No AT os termos que melhor exprimem o sentido teológico da graça são: hen e hesed.[11] “O substantivo hen designa uma qualidade que incita ao favor”,[12] expressando que “o mais forte... vem ao socorro do mais fraco que precisa de socorro por causa das suas circunstâncias ou da sua fraqueza natural”.[13] Neste sentido “a graça de Deus [é] misericórdia inclinada sobre a miséria”.[14]

O termo hebraico hesed expressa a fidelidade prestimosa de Deus manifestada na aliança[15] que permeia o AT. Apesar da fidelidade de Deus, o homem por várias vezes quebrou esta aliança[16] (Os 4:1; Is 1:4; Jr 9:4; 6:7; Ez 16:20).[17] Devido a fraqueza do homem, Deus decide fazer aquilo que ele é “radicalmente incapaz”[18] de fazer por si. Em Sua infinita graça, Deus oferece ao homem, através da obra de Seu espírito, a possibilidade de mudar-lhe o coração (Jr 31:33; Ez 36:24-27), apagar-lhe os pecados (Sl 51:3) e renovar-lhe o interior.[19]

Em suma, através do quadro apresentado pela eleição gratuita e aliança estabelecida por Deus, é apresentado o conceito veterotestamentário da graça, que compreende o amor divino que possibilita ao homem pecador, receber salvação completa, total cancelamento do pecado e o restabelecimento da relação interpessoal com o Criador.[20] Assim sendo, “a teologia da graça está... virtualmente revelada”[21] no AT.

 

 

A GRAÇA NEOTESTAMENTÁRIA

 

A graça de Deus está intrinsecamente fundamenta na própria mensagem do Novo Testamento (NT). Ela permeia “todo o Evangelho, que é a boa nova ‘da graça de Deus’ (At 20.24), ‘a palavra da Sua graça’ (At 13.43; 14.3; 2Co 6.1; Cl 1.6)”.[22]

“A doutrina a respeito da graça já está contida nos Evangelhos sinóticos, mas foi desenvolvida sobretudo por Paulo e pelos escritos joaninos”,[23] “só que Paulo partia da morte-ressurreição de Jesus Cristo para elaborar sua teologia da cháris (Gl 2,19; Rom 3,21-26; Cor 15,1-20), João extrai do próprio fato da encarnação”[24] (Jo 1:4,14,16,17; 14:6). Assim  (charis) “se tornouum dos conceitos centrais da teologia do ”,[25]estando “íntima e fundamentalmente identificada com o evangelho inteiro”.[26]

Devido a “potencialidade única que possuía a palavra no mundo grego, que ela pôde ser usada tanto para exprimir a intenção, a mentalidade, como também o dom que daí procede”.[27] “é o dom por excelência, aquele que resume toda a ação de Deus e tudo aquilo que podemos augurar a nossos irmãos”.[28] Vê-se “claramente que a idéia de dom, absolutamente gratuito e imerecido, é essencial à profunda compreensão de cháris (Ef 2.8 s.)”.[29] Este dom está repleto de generosidade e envolve o próprio doador. “É o segredo maior da redenção, experiência de vida, de união com Deus, acompanhado de paz e alegria”.[30] A graça de Deus habilita o homem a ouvir o Evangelho, acreditar nele e tornar-se um com Jesus. “Esta é a justificação operada pela graça (Rm 3,23s): o podermos ser diante de Deus exatamente o que [Ele] espera de nós, filhos diante de seu Pai (Rm 8,14-17; 1J 3,1s)”.[31]

Diante dessas explanações, fica manifesto o conceito neotestamentário da graça, que se resume como a “atividade salvífica de Deus, que decidida desde toda a eternidade, se tornou manifesta e eficaz na obra redentora de Cristo em favor de nós, e que continua e consuma em nós e no mundo a obra redentora”.[32]

 

 

A MANIFESTAÇÃO SUPREMA DA GRAÇA DIVINA

 

 

Conforme visto anteriormente, o conceito neotestamentário da graça possui uma expressão soteriológica,[33] “ora, esta vontade salvífica de Deus não é uma coisa abstrata”,[34] “Deus-Pai se auto-realiza permanentemente e por toda a eternidade como Mistério que se autodoa como Filho e como Espírito Santo... numa superabundância inesperada de Amor... e se chamando Jesus Cristo”.[35] “A graça divina não se separa de Deus”,[36] pois “Deus não tem graça. É graça”.[37] E este atributo divino expressa “o evento essencial de que testemunha o NT: a vinda de Deus em Jesus Cristo”,[38] “o plano feito antes de todos os tempos... (2 Tim 1,9)”.[39] “A vinda de Jesus Cristo mostra até onde pode ir a generosidade divina: a ponto de nos dar o seu próprio Filho (Rm 8,32)”.[40]

“Na pessoa de Cristo ‘vieram-nos a graça e a verdade’ (Jo 1,17), nós as vimos (1,14), e, com isso, temos conhecido a Deus no seu Filho único (1,18)... assim, ao ver Jesus Cristo, conhecemos que sua ação é graça (Tt 2,11; cf. 3,4)”,[41] e esta ação, “rompe o domínio de Satanás (Mc 3,27) e inaugura o Reino de Deus que está chegando (Lc 11,20 par.)”.[42] Cristo é “a revelação da vida (1Jo 1,2), pois o Pai concedeu ao Filho ‘ter a vida em si mesmo’ (Jo 5,26), porque Ele é a vida (11,25; 14,16), e dá a vida aos crentes (5,21.24; 10,10.28)”.[43] “O trecho de Rom. 5:15,17, tem a graça em oposição à morte. Ela é a medida que transmite vida, resultado da missão, da expiação e da ressurreição de Cristo”.[44] “A graça de Cristo é o dom da vida (Jo 5,26; 6,33; 17,2)”,[45] que “conduz Seus discípulos a uma viva união consigo mesmo e com o Pai”.[46]

“Pela graça de Deus, Jesus padeceu a morte por todos ( Hb 2,9)”,[47] mas devido ao Seu gracioso sacrifício é que a “escravidão medrosa, motivada pela culpa, foi substituída por uma nova motivação para [segui-Lo] em verdade, simplesmente por devoção e prazer”,[48] tornando assim a religião estéril e rígida em um “relacionamento orientado pela graça – a graça libertadora”,[49] que “é sumariada no nome Jesus Cristo... Jesus Cristo é Deus por nós”,[50] e Sua “graça instaura um mundo só, onde os opostos se encontram: Deus-Homem; Criado-Criador. Graça é a unidade e a reconciliação”,[51] a qual é revelada de forma plena em Jesus.

Em suma, as exposições apresentadas neste artigo coadunam-se na seguinte expressão: a manifestação suprema da graça divina é a autodoação de Deus em Jesus Cristo.

 

CONCLUSÃO

 

A presente pesquisa procurou apresentar, de forma sucinta, a graça de Deus como Ele a revelou em Sua palavra, e pode ser  resumida na seguinte ordem: a primeira parte se propôs a apresentar que a graça veterotestamentária compreende o amor divino que possibilita ao homem pecador, receber salvação completa, total cancelamento do pecado e o restabelecimento da relação interpessoal com o Criador. A segunda parte enfatizou a visão neotestamentária deste dom, que se resume como a atividade salvífica de Deus, que decidida desde toda a eternidade, se tornou manifesta na obra redentora de Cristo em favor do ser humano, e que continua e se consuma em seus filhos e no mundo. A terceira parte complementa o que antes foi dito expressando que, o próprio Deus se entregou na pessoa de Jesus para resgatar a humanidade, esta ação salvífica exposta de maneira clara na vida, morte e ressurreição de Cristo se consuma como a manifestação suprema da graça divina.

Em suma, pode ser dito que a religião da Bíblia é uma religião de graça, na qual Deus mostra que escolheu o homem e proveu os meios, para que este, possa ser semelhante a Ele, mesmo que não mereça.



* Yvson Paulo Nascimento Ferreira é aluno do 1º ano do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia no Instituto Adventista de Ensino do Nordeste.
[2]J. Schildenberger, “Graça”, Dicionário de teologia bíblica (DTB), ed. Johannes B. Bauer (São Paulo: Edições Loyola, 1988), 1:446.
[3]Jacques Giblet,Graça, Vocabulário de teologia bíblica (VTB), ed. Xavier L. Dufour (Petrópolis, RJ: Vozes, 1970), 386.
[4]Ibid.
[5]Schildenberger, “Graça”, DTB, 447.
[6]Para uma melhor noção da revelação da graça antes e depois do pecado original do homem, ver: Russel N. Champlin, O Antigo Testamento interpretado (ATI), 7 vols, (São Paulo: Candeia, 2000), 1:23-28, 34-36.
[7]J. L. R. de la Peña, “Graça”, Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo (DCFC), ed. Cassiano F. Samanes e J. J. T. Acosta (São Paulo: Paulus, 1999), 319.
[8]Ibid.
[9]Russell N. Champlin e João M. Bentes, “Graça”, Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia (EBTF) (São Paulo: Candeia, 1995), 2:955. Para uma melhor noção da manifestação da graça na eleição de Deus, ver: F. Michaeli, “Eleger, Vocabulário bíblico (VB), ed. Jean J. V. Allmen (São Paulo: Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, 1972), 1:114-116.
[10]Peña, “Graça”, DCFC, 319.
[11]A.V. D. Born ,“Graça”, Dicionário enciclopédico da Bíblia (DEB), ed. Frederico Vier (Petrópolis, RJ: Vozes, 1971), 649. Para uma melhor noção do termo hen, ver: Edwin Yamauchi, “hen. Favor, graça, encanto”, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento (DITAT), eds. R. Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (São Paulo: Vida Nova, reimpressão 1999), 495-496.
[12]John L. Mckenzie, “Graça”, Dicionário bíblico (DB) (São Paulo: Paulus, 1984), 391.
[13]H. H. Esser, “Graça”, Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento (DITNT), eds. C. Brown e L. Coenen (São Paulo: Vida Nova, 2000), 2:908.
[14]Giblet, Graça, VTB, 386.
[15]Born ,“Graça”, DEB, 649.
[16]Para uma melhor noção do termo aliança, ver: G. Pidoux, “Aliança”, VB, 1:21-23.
[17]Giblet,Graça, VTB, 387.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
[18]Ibid.
[19]Ibid.
[20]Peña, “Graça”, DCFC, 320. Ver também: P. E. Hughes, “Graça”, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã (EHTIC), ed. Walter A. Elwile (São Paulo: Vida Nova, 1992), 2:216-220.
[21]H. Rondet, La gracia de Cristo, Barcelona, 1966, 29, citado em Peña, “Graça”, DCFC, 320.
[22]F. Baudraz, “Graça”, VB, 1:158. Para se ter uma melhor noção sobre a graça no Evangelho, ver: Valdir Steverdagel, ed., No princípio era o Verbo (Curitiba, PR: Encontrão Editora, 1994), 25-31. Ver também: Frank Stagg, O livro dos atos dos apóstolos (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1958), 306; F. de L. Calle, A teologia de Marcos (São Paulo: Edições Paulinas, 1984), 38-41, 129-140.
[23]Born , “Graça”, DEB, 650. Para uma melhor noção da doutrina da Graça nos escritos paulinos, ver: C. J. Allen, O Evangelho segundo Paulo (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1961), 82-110. Ver também: James Stalker, O apóstolo Paulo (São Paulo: Imprensa Metodista, 1948), 55-72; Daniel Patte, Paulo, sua fé e a força do Evangelho (São Paulo: Edições Paulinas, 1987), 250-260, 285-287; J. M. González, O Evangelho de Paulo (São Paulo: Edições Paulinas, 1980), 120, 134-148, 278.
[24]Peña, “Graça”, DCFC, 320-321. Para uma melhor noção da doutrina da Graça nos escritos de João, ver: Francisco de Lacalle, A teologia do quarto Evangelho (São Paulo: Edições Paulinas, 1985), 118-126.
[25]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 450.
[26]Mckenzie, “Graça”, DB, 392.
[27]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 451. Para uma melhor noção do termo grego charis, ver: Kenneth S. Wvest, Jóias do Novo Testamento grego (São Paulo: Imprensa Bastista Regular, 1986), 77-79.
[28]Giblet, “Graça”, VTB, 388.
[29]Alan Richardson, Introdução a teologia do Novo Testamento (São Paulo: Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, 1966), 282.
[30]Dicionário enciclopédico das religiões (DER), ed. 1995, ver “Graça”.
[31]Giblet, “Graça”, VTB, 390.
[32]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 453.
[33]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 450. “O Apóstolo [Paulo usa] o termo cháris para nomear a condensação de todos os gestos e etapas da iniciativa salvífica divina, e de seus efeitos concretos, através da pessoa de Cristo. Assim, pois, a cháris paulina não é algo, mas alguém; o dom gracioso que Deus nos faz é a  entrega de seu Filho (Rm 8,31-39)”. Peña, “Graça”, DCFC, 320.
[34]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 451.
[35]Leonardo Boff, Graça e experiência humana (Petrópolis, RJ: Vozes, 1998), 16.
[36]F. Baudraz, “Graça”, VB, 1:158.
[37]Ibid.
[38]Ibid.
[39]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 451.
[40]Giblet, Graça, VTB, 388.
[41]Ibid.
[42]Born, “Graça”, DEB, 650. “O Reino de Deus se revela então como Reino de filhos, no qual os pecadores são os preferidos (Lc 15,7.10), os menores são os maiores (Lc 9,48) e os últimos são os primeiros (Mt 19,30). É, em suma, o Reino do qual Paulo designará com o termo graça”. Peña, “Graça”, DCFC, 320.
[43]Born, “Graça”, DEB, 652.
[44]Champlim e Bentes,“Graça”, EBTF, 2:956. Para uma melhor noção da graça em Rm 5:15-17, ver: “Graça” [Rm 5:15-17], Comentario biblico adventista del séptimo día (CBASD), ed. Tucio N. Peverini (Boise, ID: Publicaciones Interamericanas, 1988), 6:528-530.
[45]Giblet,Graça, VTB, 390.
[46]SDA Bible Commentary, vol. 5:1148, citado em Beatrice S. Neall, “As Grandes Orações da Bíblia”, Lição da Escola Sabatina, janeiro-março de 2001, 132. “Com efeito, crer em Cristo é ‘permanecer nele’ como os sarmentos na videira (Jo 15,1-6), isto é, receber do Filho seu dinamismo vital, da mesma forma que o Filho o recebe do Pai (Jo 17,23)”. Peña, “Graça”, DCFC, 321. Para uma melhor noção dos resultados práticos da graça na vida do crente, ver: Charles R. Swindoll, O despertar da graça (São Paulo: Bompastor, 1994), 15-17.
[47]Mckenzie, “Graça”, DB, 392.
[48]Swindoll, 9.
[49]Ibid.
[50]Champlim e Bentes,“Graça”, EBTF, 2:955.
[51]Boff, 17.

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