A MANIFESTAÇÃO DA GRAÇA DE DEUS
Yvson Paulo Nascimento Ferreira*[1]
Resumo
A doutrina da graça está amplamente revelada na
Bíblia, e esta demonstra o incomensurável amor de Deus pelos seres humanos. A
graça divina foi manifestada desde o princípio, de forma mais contundente,
através da maneira como Deus tratou o homem antes e depois da queda. Em sua
perspectiva veterotestamentária, a graça é revelada a partir dos conceitos de
eleição e de aliança. Esta perspectiva é ampliada no Novo Testamento, sobretudo
pela contribuição do apóstolo Paulo, o qual conseguiu captar na vida de Jesus a
autodoação de Deus. A primeira parte
deste artigo traz informações referentes as primeiras revelações desta dádiva
divina. Tais informações são complementadas e ampliadas na segunda parte com a
descrição da renovação que recebeu esta doutrina nos escritos
neotestamentários. A terceira parte procura mostrar como a graça se manifestou
de forma plena em, e por Jesus.
Abstract
A GRAÇA VETEROTESTAMENTÁRIA
Não consta nos escritos veterotestamentários um termo
próprio para assinalar a palavra graça como atualmente entendida pelos
cristãos,[2]
entretanto, esta doutrina “figura [por todo o] Antigo Testamento [AT]”,[3]
em forma de uma “promessa e como uma esperança”.[4]
A Graça divina é manifestada desde o princípio, sobretudo, pela maneira como
Deus tratou o homem antes e depois da queda[5]
(Gn 2:8-22; 3:8-15).[6]
Deus não se deixou abater pela situação pecaminosa do homem, antes, por Sua
iniciativa gratuita suscitou “no homem um movimento de conversão... [que]
exercesse-a do nada, como se havia exercido [em] Sua iniciativa criadora”.[7] A
graça divina é ainda igualmente revelada “ao longo da experiência religiosa do
povo [de Israel], a partir dos conceitos de eleição
e de aliança”.[8] “A eleição do povo de Israel se baseou
exclusivamente sobre a vontade de Deus”,[9]
sendo assim “um gesto absolutamente gracioso”.[10]
No AT os termos que melhor exprimem o sentido teológico da graça são: hen e hesed.[11]
“O substantivo hen designa uma
qualidade que incita ao favor”,[12]
expressando que “o mais forte... vem ao socorro do mais fraco que precisa de
socorro por causa das suas circunstâncias ou da sua fraqueza natural”.[13] Neste sentido “a graça de Deus [é] misericórdia
inclinada sobre a miséria”.[14]
O termo hebraico hesed
expressa a fidelidade prestimosa de Deus manifestada na aliança[15]
que permeia o AT. Apesar da fidelidade de Deus, o homem por várias vezes
quebrou esta aliança[16]
(Os 4:1; Is 1:4; Jr 9:4; 6:7; Ez 16:20).[17]
Devido a fraqueza do homem, Deus decide fazer aquilo que ele é “radicalmente
incapaz”[18]
de fazer por si. Em Sua infinita graça, Deus oferece ao homem, através da obra
de Seu espírito, a possibilidade de mudar-lhe o coração (Jr 31:33; Ez
36:24-27), apagar-lhe os pecados (Sl 51:3) e renovar-lhe o interior.[19]
A GRAÇA NEOTESTAMENTÁRIA
A graça de
Deus está intrinsecamente fundamenta na própria mensagem do Novo Testamento
(NT). Ela permeia “todo o Evangelho, que é a boa nova ‘da graça de Deus’ (At
20.24), ‘a palavra da Sua graça’ (At 13.43; 14.3; 2Co 6.1; Cl 1.6)”.[22]
“A doutrina a respeito da graça já está contida nos
Evangelhos sinóticos, mas foi desenvolvida sobretudo por Paulo e pelos escritos
joaninos”,[23]
“só que Paulo partia da morte-ressurreição de Jesus Cristo para elaborar sua
teologia da cháris (Gl 2,19; Rom
3,21-26; Cor 15,1-20), João extrai do próprio fato da encarnação”[24]
(Jo 1:4,14,16,17; 14:6). Assim (charis)
“se tornouum dos conceitos centrais da teologia do ”,[25]estando
“íntima e fundamentalmente identificada com o evangelho inteiro”.[26]
Devido a “potencialidade única que possuía a palavra no
mundo grego, que ela pôde ser usada tanto para exprimir a intenção, a
mentalidade, como também o dom que
daí procede”.[27] “é
o dom por excelência, aquele que resume toda a ação de Deus e tudo aquilo que
podemos augurar a nossos irmãos”.[28]
Vê-se “claramente que a idéia de dom, absolutamente
gratuito e imerecido, é essencial à profunda compreensão de cháris (Ef 2.8 s.)”.[29]
Este dom está repleto de generosidade e envolve o próprio doador. “É o segredo
maior da redenção, experiência de vida, de união com Deus, acompanhado de paz e
alegria”.[30]
A graça de Deus habilita o homem a ouvir o Evangelho, acreditar nele e
tornar-se um com Jesus. “Esta é a justificação operada pela graça (Rm 3,23s): o
podermos ser diante de Deus exatamente o que [Ele] espera de nós, filhos diante
de seu Pai (Rm 8,14-17; 1J 3,1s)”.[31]
Diante dessas explanações, fica manifesto o conceito
neotestamentário da graça, que se resume como a “atividade salvífica de Deus,
que decidida desde toda a eternidade, se tornou manifesta e eficaz na obra
redentora de Cristo em favor de nós, e que continua e consuma em nós e no mundo
a obra redentora”.[32]
A MANIFESTAÇÃO SUPREMA DA GRAÇA DIVINA
Conforme visto anteriormente, o conceito
neotestamentário da graça possui uma expressão soteriológica,[33]
“ora, esta vontade salvífica de Deus não é uma coisa abstrata”,[34]
“Deus-Pai se auto-realiza permanentemente e por toda a eternidade como Mistério
que se autodoa como Filho e como Espírito Santo... numa superabundância
inesperada de Amor... e se chamando Jesus Cristo”.[35]
“A graça divina não se separa de Deus”,[36]
pois “Deus não tem graça. É graça”.[37]
E este atributo divino expressa “o evento essencial de que testemunha o NT: a
vinda de Deus em Jesus Cristo”,[38]
“o plano feito antes de todos os tempos... (2 Tim 1,9)”.[39]
“A vinda de Jesus Cristo mostra até onde pode ir a generosidade divina: a ponto
de nos dar o seu próprio Filho (Rm 8,32)”.[40]
“Na pessoa de Cristo ‘vieram-nos a graça e a verdade’
(Jo 1,17), nós as vimos (1,14), e, com isso, temos conhecido a Deus no seu
Filho único (1,18)... assim, ao ver Jesus Cristo, conhecemos que sua ação é
graça (Tt 2,11; cf. 3,4)”,[41]
e esta ação, “rompe o domínio de Satanás (Mc 3,27) e inaugura o Reino de Deus
que está chegando (Lc 11,20 par.)”.[42]
Cristo é “a revelação da vida (1Jo 1,2), pois o Pai concedeu ao Filho ‘ter a
vida em si mesmo’ (Jo 5,26), porque Ele é a vida (11,25; 14,16), e dá a vida
aos crentes (5,21.24; 10,10.28)”.[43]
“O trecho de Rom. 5:15,17, tem a graça em oposição à morte. Ela é a medida que
transmite vida, resultado da missão, da expiação e da ressurreição de Cristo”.[44]
“A graça de Cristo é o dom da vida (Jo 5,26; 6,33; 17,2)”,[45]
que “conduz Seus discípulos a uma viva união consigo mesmo e com o Pai”.[46]
“Pela graça de Deus, Jesus padeceu a morte por todos (
Hb 2,9)”,[47]
mas devido ao Seu gracioso sacrifício é que a “escravidão medrosa, motivada
pela culpa, foi substituída por uma nova motivação para [segui-Lo] em verdade,
simplesmente por devoção e prazer”,[48]
tornando assim a religião estéril e rígida em um “relacionamento orientado pela
graça – a graça libertadora”,[49]
que “é sumariada no nome Jesus Cristo... Jesus Cristo é Deus por nós”,[50]
e Sua “graça instaura um mundo só, onde os opostos se encontram: Deus-Homem;
Criado-Criador. Graça é a unidade e a reconciliação”,[51]
a qual é revelada de forma plena em Jesus.
Em suma, as exposições apresentadas neste artigo
coadunam-se na seguinte expressão: a manifestação suprema da graça divina é a
autodoação de Deus em Jesus Cristo.
CONCLUSÃO
A presente pesquisa procurou apresentar, de forma
sucinta, a graça de Deus como Ele a revelou em Sua palavra, e pode ser resumida na seguinte ordem: a primeira parte
se propôs a apresentar que a graça veterotestamentária compreende o amor divino
que possibilita ao homem pecador, receber salvação completa, total cancelamento
do pecado e o restabelecimento da relação interpessoal com o Criador. A segunda
parte enfatizou a visão neotestamentária deste dom, que se resume como a
atividade salvífica de Deus, que decidida desde toda a eternidade, se tornou
manifesta na obra redentora de Cristo em favor do ser humano, e que continua e
se consuma em seus filhos e no mundo. A terceira parte complementa o que antes
foi dito expressando que, o próprio Deus se entregou na pessoa de Jesus para
resgatar a humanidade, esta ação salvífica exposta de maneira clara na vida,
morte e ressurreição de Cristo se consuma como a manifestação suprema da graça
divina.
Em suma, pode ser dito que a religião da Bíblia é uma
religião de graça, na qual Deus mostra que escolheu o homem e proveu os meios,
para que este, possa ser semelhante a Ele, mesmo que não mereça.
[2]J. Schildenberger, “Graça”,
Dicionário de teologia bíblica (DTB),
ed. Johannes B. Bauer (São Paulo:
Edições Loyola, 1988), 1:446.
[3]Jacques Giblet, “Graça”, Vocabulário de teologia bíblica (VTB), ed. Xavier L. Dufour
(Petrópolis, RJ: Vozes, 1970), 386.
[4]Ibid.
[5]Schildenberger, “Graça”, DTB, 447.
[6]Para uma melhor noção da revelação da graça antes e depois do pecado
original do homem, ver: Russel N. Champlin, O
Antigo Testamento interpretado (ATI), 7 vols, (São Paulo: Candeia, 2000),
1:23-28, 34-36.
[7]J. L. R. de la Peña, “Graça”,
Dicionário de conceitos fundamentais do
cristianismo (DCFC), ed. Cassiano F. Samanes e J. J. T. Acosta (São Paulo: Paulus, 1999), 319.
[8]Ibid.
[9]Russell N. Champlin e João M. Bentes, “Graça”, Enciclopédia de
Bíblia, teologia e filosofia (EBTF) (São Paulo: Candeia, 1995), 2:955. Para
uma melhor noção da manifestação da graça na eleição de Deus, ver: F. Michaeli,
“Eleger”, Vocabulário bíblico (VB), ed. Jean J. V. Allmen (São Paulo:
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, 1972), 1:114-116.
[10]Peña, “Graça”, DCFC, 319.
[11]A.V. D. Born ,“Graça”, Dicionário enciclopédico da Bíblia (DEB), ed. Frederico Vier (Petrópolis, RJ:
Vozes, 1971), 649. Para uma melhor noção do termo hen, ver: Edwin Yamauchi, “hen.
Favor, graça, encanto”, Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento (DITAT), eds. R. Laird
Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (São Paulo: Vida Nova, reimpressão
1999), 495-496.
[12]John L. Mckenzie, “Graça”,
Dicionário bíblico (DB) (São Paulo:
Paulus, 1984), 391.
[13]H. H. Esser, “Graça”, Dicionário internacional de teologia do Novo
Testamento (DITNT), eds. C. Brown e L. Coenen (São Paulo: Vida Nova, 2000),
2:908.
[14]Giblet, “Graça”, VTB, 386.
[15]Born ,“Graça”, DEB, 649.
[16]Para uma melhor noção do termo aliança, ver: G. Pidoux, “Aliança”, VB, 1:21-23.
[17]Giblet, “Graça”, VTB, 387.
[18]Ibid.
[19]Ibid.
[20]Peña, “Graça”, DCFC, 320. Ver também: P. E. Hughes, “Graça”, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã (EHTIC), ed.
Walter A. Elwile (São Paulo: Vida Nova, 1992), 2:216-220.
[21]H. Rondet, La gracia de
Cristo, Barcelona, 1966, 29, citado em Peña, “Graça”, DCFC, 320.
[22]F. Baudraz, “Graça”, VB, 1:158. Para se ter uma melhor noção
sobre a graça no Evangelho, ver: Valdir Steverdagel, ed., No princípio era o Verbo (Curitiba, PR: Encontrão Editora, 1994),
25-31. Ver também: Frank Stagg, O livro
dos atos dos apóstolos (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1958),
306; F. de L. Calle, A teologia de Marcos
(São Paulo: Edições Paulinas, 1984), 38-41, 129-140.
[23]Born , “Graça”, DEB, 650. Para uma melhor noção da
doutrina da Graça nos escritos paulinos, ver: C. J. Allen, O Evangelho segundo Paulo (Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1961), 82-110. Ver também: James Stalker, O apóstolo Paulo (São Paulo: Imprensa Metodista, 1948), 55-72;
Daniel Patte, Paulo, sua fé e a força do
Evangelho (São Paulo: Edições Paulinas, 1987), 250-260, 285-287; J. M.
González, O Evangelho de Paulo (São
Paulo: Edições Paulinas, 1980), 120, 134-148, 278.
[24]Peña, “Graça”, DCFC, 320-321. Para uma melhor noção da
doutrina da Graça nos escritos de João, ver: Francisco de Lacalle, A teologia do quarto Evangelho (São
Paulo: Edições Paulinas, 1985), 118-126.
[25]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 450.
[26]Mckenzie, “Graça”, DB, 392.
[27]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 451. Para uma melhor noção do termo
grego charis, ver: Kenneth S. Wvest, Jóias do Novo Testamento grego (São
Paulo: Imprensa Bastista Regular, 1986), 77-79.
[28]Giblet, “Graça”, VTB, 388.
[29]Alan Richardson, Introdução a
teologia do Novo Testamento (São Paulo: Associação de Seminários Teológicos
Evangélicos, 1966), 282.
[30]Dicionário enciclopédico das religiões (DER), ed. 1995, ver “Graça”.
[31]Giblet, “Graça”, VTB, 390.
[32]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 453.
[33]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 450. “O Apóstolo [Paulo usa] o
termo cháris para nomear a
condensação de todos os gestos e etapas da iniciativa salvífica divina, e de
seus efeitos concretos, através da pessoa de Cristo. Assim, pois, a cháris paulina não é algo, mas alguém; o dom gracioso que Deus nos faz é a entrega de seu Filho (Rm
8,31-39)”. Peña, “Graça”, DCFC, 320.
[34]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 451.
[35]Leonardo Boff, Graça e
experiência humana (Petrópolis, RJ: Vozes, 1998), 16.
[36]F. Baudraz, “Graça”, VB, 1:158.
[37]Ibid.
[38]Ibid.
[39]G. Trenkler, “Graça”, DTB, 451.
[40]Giblet, “Graça”, VTB, 388.
[41]Ibid.
[42]Born, “Graça”, DEB, 650. “O Reino de Deus se revela então como Reino de filhos, no qual os
pecadores são os preferidos (Lc 15,7.10), os menores são os maiores (Lc 9,48) e
os últimos são os primeiros (Mt 19,30). É, em suma, o Reino do qual Paulo
designará com o termo graça”. Peña, “Graça”, DCFC, 320.
[43]Born, “Graça”, DEB, 652.
[44]Champlim e Bentes,“Graça”,
EBTF, 2:956. Para uma melhor noção da
graça em Rm 5:15-17, ver: “Graça” [Rm 5:15-17], Comentario biblico adventista del séptimo día (CBASD), ed. Tucio N.
Peverini (Boise, ID: Publicaciones Interamericanas, 1988), 6:528-530.
[45]Giblet, “Graça”, VTB, 390.
[46]SDA Bible Commentary, vol. 5:1148, citado em Beatrice S. Neall, “As Grandes Orações da Bíblia”,
Lição da Escola Sabatina,
janeiro-março de 2001, 132. “Com efeito, crer em Cristo é ‘permanecer nele’
como os sarmentos na videira (Jo 15,1-6), isto é, receber do Filho seu
dinamismo vital, da mesma forma que o Filho o recebe do Pai (Jo 17,23)”. Peña,
“Graça”, DCFC, 321. Para uma melhor noção dos resultados práticos da graça
na vida do crente, ver: Charles R. Swindoll, O despertar da graça (São Paulo: Bompastor, 1994), 15-17.
[47]Mckenzie, “Graça”, DB, 392.
[48]Swindoll, 9.
[49]Ibid.
[50]Champlim e Bentes,“Graça”,
EBTF, 2:955.
[51]Boff, 17.